Como os 3 papas africanos mudaram o cristianismo – e por que nunca mais houve um
04/05/2025
(Foto: Reprodução) O mais recente deles foi há mais de 1.500 anos. Victor I, Melquíades e Geladius I foram reconhecidos como santos pela Igreja. Papa Victor I (à esquerda), papa Gelasius I e papa Melquíades (à direita) são de origem africana
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Após a morte do papa Francisco, há especulações de que o próximo líder da Igreja Católica pode vir da África.
Três africanos aparecem na corrida para suceder o Papa Francisco: Fridolin Ambongo Besungu, da República do Congo, Peter Kodwo Appiah Turkson, de Gana, e Robert Sarah, de Guiné.
Mas a igreja já teve africanos no comando antes. Historiadores acreditam que houve três papas com ligações ao continente africano, o mais recente deles há mais de 1.500 anos.
Acredita-se que todos eles eram de origem norte-africana. Isso porque o Império Romano se estendia por áreas que hoje correspondem à Tunísia, ao nordeste da Argélia e à costa oeste da Líbia.
Antes do estabelecimento do islã, o cristianismo tinha uma presença muito forte na região. Segundo o professor Christopher Bellitto, da Universidade de Kean, nos Estados Unidos, "a África do Norte foi um 'cinturão bíblico' do cristianismo antigo".
Embora pouco se saiba sobre a vida pessoal dos últimos três papas africanos, historiadores concordam que todos eles tiveram um papel muito importante na história inicial da Igreja Católica.
Os três foram reconhecidos como santos pela Igreja.
Victor I (189-199 d.C)
Papa Victor I ficou conhecido por ter estabelecido que a Páscoa deve ser celebrada sempre em um domingo
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Acredita-se que o papa Victor I era de origem berbere — de povos nativos do norte da África — e esteve no comando da Igreja Católica durante um período de perseguições esporádicas aos cristãos que se recusavam em aceitar e adorar os deuses romanos.
Talvez ele seja mais conhecido por ter estabelecido que a celebração da Páscoa fosse realizada sempre no domingo.
No século 2, alguns grupos cristãos da província romana da Ásia (atual Turquia) celebravam a Páscoa no mesmo dia que os judeus celebravam a libertação do povo hebreu da escravidão no Egito, o que poderia cair em diferentes dias da semana.
Contudo, cristãos da parte ocidental do império acreditavam que Jesus havia ressuscitado em um domingo, então a Páscoa deveria ser sempre celebrada nesse dia.
O debate sobre quando a ressurreição aconteceu gerou uma grande controvérsia dentro da Igreja e simbolizava conflitos maiores entre o Oriente e o Ocidente, relacionados à questão se os cristãos deveriam ou não seguir as práticas judaicas.
Para resolver esse impasse, Victor I convocou o primeiro Sínodo de Roma — uma reunião de líderes da igreja. E fez isso ameaçando excomungar da igreja aqueles bispos que se recusassem em seguir as suas orientações.
"Ele foi uma voz bastante firme para colocar todos, literalmente, na mesma página", disse Bellitto.
Esse foi um feito impressionante, segundo Bellitto, uma vez que "ele era o bispo de Roma em uma época em que o cristianismo ainda era ilegal no Império Romano".
Outro fato importante do legado de Victor I foi a introdução do latim como língua comum da Igreja Católica. Antes disso, o grego antigo era a principal língua usada na liturgia católica, assim como nas comunicações oficiais da igreja.
O próprio Victor I escrevia e falava latim, idioma que era amplamente falado na África do Norte.
Melquíades (311-314 d.C)
Papa Melquíades se tornou o primeiro papa a ter residência oficial após ganhar um palácio de um imperador romano
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Acredita-se que o papa Melchiades, ou Melquíades — na tradução para o português —, nasceu na África.
Durante o seu pontificado, o cristianismo passou a ser cada vez mais aceito pelos sucessivos imperadores romanos, se tornando, eventualmente, a religião oficial do Império.
Antes disso, a perseguição aos cristãos foi registrada em diferentes momentos da história do Império.
Mas o professor Bellitto ressalta que Melquíades não foi o responsável direto por essa mudança. Ele foi mais um "beneficiário da benevolência romana" do que um grande negociador.
O imperador romano Constantine deu a Melquíades um palácio, o que fez dele o primeiro papa a ter uma residência oficial.
Ele também recebeu a permissão de Constantine para construir a Basílica de Latrão, hoje a igreja pública mais antiga de Roma.
Embora os papas modernos vivam e trabalhem no Vaticano, a igreja de Latrão é, por vezes, chamada no catolicismo de "a mãe de todas as igrejas".
Gelasius I (492-496 d.C)
Papa Gelasius I é o único que pode não ter nascido na África, apesar de ter origens no continente
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Gelasius I é o único dos três papas que os historiadores acreditam não ter nascido na África.
"Há uma referência a ele como nascido em Roma. Então, nós não sabemos se ele chegou a viver no norte da África, mas é claro que ele tinha origens lá", explica Bellitto.
Segundo o professor, Gelasius I foi o mais importante dos três líderes africanos da Igreja. Ele é amplamente conhecido como o primeiro papa a ser oficialmente chamado de "Vigário de Cristo", um termo que reforça o papel do papa como representante de Cristo na terra.
Ele também foi responsável por desenvolver a chamada 'Doutrina das Duas Espadas' que defende a separação, mas com igualdade de importância, entre os poderes da Igreja e do Estado.
Gelasius I fez uma distinção crucial ao afirmar que ambos os poderes foram dados por Deus à igreja, que então delegava o poder terreno para o Estado, fazendo da Igreja, em última instância, superior.
"Tempos depois, os papas tentaram vetar a escolha de um imperador ou rei, porque diziam que Deus lhes havia dado aquele poder", explicou Bellitto.
Gelasius I também é lembrado por sua resposta ao Cisma Acaciano — uma separação entre as igrejas cristãs orientais e ocidentais entre 484 e 519.
Durante esse período, ele afirmou a supremacia de Roma e do papado sobre toda a Igreja Católica, tanto no Oriente quanto no Ocidente, algo que, segundo especialistas, foi além do que qualquer um dos seus antecessores havia feito.
Gelasius I é também responsável por uma celebração popular que ainda é comemorada todos os anos: ele estabeleceu o St Valentine's Day (Dia de São Valentim, na tradução livre para o português) em 14 de fevereiro de 496, com objetivo de homenagear o mártir cristão São Valentim.
Alguns relatos dizem que Valentim foi uma espécie de padre que continuou a celebrar casamentos em segredo, mesmo quando eles foram banidos pelo imperador Claudius II.
Historiadores acreditam que o Dia de São Valentim tem raízes no antigo festival romano da fertilidade e do amor, Lupercalia, e que a decisão de Gelasius I foi uma tentativa de tornar cristã uma tradição pagã.
Qual era a aparência dos papas africanos?
Igreja Católica perdeu forças na África após a queda do Império Romano
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De acordo com o professor Bellitto, não há como saber com precisão qual era a aparência desses três papas.
"A gente precisa lembrar que no Império Romano, e até mesmo na Idade Média, não se pensava em raça como se pensa nos dias de hoje. Não tinha nada a ver com a cor de pele", disse à BBC.
As pessoas no Império Romano não lidavam com raça, mas sim com etnia", acrescentou.
Philomena Mwaura, professora associada de Estudos Religiosos da Universidade de Kenyatta, em Nairóbi, destaca que a África Romana era multicultural, formada por povos berberes e grupos púnicos, ex-escravizados libertos e pessoas vindas de Roma.
"A comunidade norte-africana era bem diversificada, e também ficava em uma rota comercial para muitas pessoas envolvidas na comercialização de antiguidades", explicou.
Em vez de se identificarem com grupos étnicos específicos, ela afirma que "a maioria das pessoas que viviam nas áreas do Império Romano se identificava como romana."
Por que nunca mais houve outro papa africano?
Acredita-se que depois de Gelasius I não houve outro papa de origem africana.
"A Igreja Católica na África do Norte foi enfraquecida por muitas forças, incluindo a queda do Império Romano e também a incursão de muçulmanos no século 7", disse a professora Mwaura.
Apesar disso, alguns especialistas dizem que a prevalência do islã na região não explica por si só a ausência de um papa africana nos últimos dois milênios.
Segundo Bellitto, o processo para eleger um novo pontífice se tornou um "monopólio italiano" ao longo do tempo.
Contudo, ele afirma que as chances de um papa vindo da Ásia ou da África nas próximas décadas são altas, uma vez que o número de católicos no hemisfério sul supera o do hemisfério norte.
De fato, o catolicismo tem se expandido mais rapidamente na região da África Subsaariana hoje do que em qualquer outro lugar.
Os dados mais recentes mostram que havia 281 milhões de católicos na África em 2023. Isso equivale a 20% da congregação mundial.
Mas a professora Mwaura argumenta que, "embora o cristianismo seja muito forte na África, o poder da igreja ainda está no Norte, onde sempre estiveram os recursos".
"Talvez, à medida que isso continue crescendo e se torne algo muito forte dentro do continente, chegue o momento em que teremos um papa africano", afirmou.